A
coerência da revista Veja com sua filiação ao pensamento liberal-conservador
tem sido gigante. Em uma reportagem (link) sobre ensino superior,
intitulada “O drama de estudantes – e famílias – afetados pelas cotas” a
revista mostra a vida de famílias que pagam os estudos dos seus filhos em
escolas privadas e agora estariam sendo “prejudicadas” pela Lei da Cotas nas
instituições federais, que prevê que até 2016, 50% das vagas desses
estabelecimentos de ensino devem ser reservadas a estudantes que fizeram todo o
Ensino Médio em escolas públicas.
Sem
rodeios devo dizer que a reportagem só consegue enganar ou sensibilizar
ingênuos ou leigos completos. Em um atentado a lógica e a qualquer estudo
teórico sério na área da educação, a reportagem se utiliza de artifícios e
argumentos pueris, construção de retórica oportunista e desonesta.
1 —
Utiliza-se de exceções (casos de pessoas com bolsas em escolas privadas) para
criar e induzir uma falsa regra, que chama de “drama” de milhares. Culpabiliza
uma política e a quem ela atende pelo “sofrimento” das famílias da matéria.
2 — Busca
explicar o todo ao apresentar a parte. Na frase que se diz “Como aluna de
escola privada, ela só terá direito a disputar a metade das vagas restantes.”,
tenta apresentar como injusto o fato de 50% das vagas para alunos de escolas
privadas. Vamos ao todo, no Brasil 88% das matrículas do Ensino Médio são
públicas e 12% são em instituições privadas. Historicamente, a ocupação das
universidades federais se dava em sua ampla maioria por alunos de escolas
privadas.
3 —
Depois de depreciar o ensino público brasileiro, Veja questiona como a política
de cotas irá melhorar esse mesmo ensino básico público, como se a função dessa
política, do ponto de vista prático, fosse essa. Tentativa de reforçar aquele
argumento batido de que “o problema é o ensino básico que tem que melhorar”,
argumento descontextualizado que tenta usar do não feito para não fazer. Cotas
não exclui em nada melhorias na educação básica, pelo contrário, pressiona para
tal.
4 — A
ideologia da meritocracia, calcada em uma realidade de fantasia, da conquista
de estima social por via puramente individual, guia a reportagem, no trecho
metade das vagas “não serão mais ocupadas segundo o mérito acadêmico dos
candidatos”, despreza -se toda concorrência, mérito, esforço que há no universo
de, no mínimo, 88% dos alunos de escolas públicas que irão disputar as vagas.
Cenário bem mais “competitivo” que se ficasse somente com os estudantes de
escolas privadas. Argumento preconceituoso e mal intencionado.
5 — Por
que mal intencionado? Por uma questão simples que também remete ao todo da
questão. No Brasil, 27% das vagas no ensino superior são públicas, dessas 56%
são nas instituições federais, as quais cobrem as cotas. Falamos, mais ou
menos, de 2 pedaços em uma pizza de 12 fatias, em uma metáfora rápida, as cotas
ainda são metade disso, isto é 1 pedaço. 7 milhões disputando 120 mil vagas não
há concorrência ou mérito nessa disputa? Já que tanto louvam esses valores.
6 — Os
defensores do setor privado na educação (pois a entendem como serviço e não
como direito) retratam o revés que as cotas estão causando na vida de
estudantes de escolas privadas. Esses sempre ocuparam a universidade federal e
vão continuar ocupando, desproporcionalmente, pois são 12% das matrículas e
terão 50% das vagas. E a lei trata apenas de exigência de ensino médio no
sistema público, isto é, quem fez o ensino fundamental em uma escola privada
poderá concorrer pelas cotas.
O
desespero de preservar privilégios que traduz tudo o que produz a revista Veja
é alarmante, não pela ofensa que faz à inteligência das pessoas, mas porque
vivemos num país injusto e desigual que precisa de muito mais. Imaginamos se
mudanças substantivas ocorrerem o que será capaz de fazer esse meio de
comunicação se diante de mudanças pequenas e pontuais já faz esse papel tão
baixo e mesquinho.
Os
sacrifícios das famílias narrados na reportagem são transformados em bodes
expiatórios para tocar as pessoas e convencê-las de que a realidade é a soma de
decisões e esforços individuais. Valor sublime do liberalismo, o individualismo
alçado a proporções inimagináveis, a realidade é bem mais difícil de explicar
que isso.
Essas
famílias sonham e investem em seus filhos, ótimo, esses têm seus lugares
reservados há muitos anos e seguirão tendo. Com as cotas, estamos falando de quem
até então nunca sonhou nem pode investir na educação dos filhos, de quem pela
primeira vez na história de sua família pode pensar em outra possibilidade a
não ser trabalhar em sub-empregos e viver sub-felicidades.
Vocês
podem perguntar porque tu ainda lês a Veja e dás importância para as bobagens
que são publicadas. Bom, faço isso porque minha disputa agora, na vida é de
ideias. Porque essa revista é postada por conhecidos meus, porque ela está na
maioria dos consultórios médicos do Brasil e em repartições públicas e porque
as pessoas vão ao médico e, em repartições, elas esperam, leem e eu, com muitos
companheiros/as tenho que disputar a ideologia dessas pessoas com essa péssima
revista.
por Gregório Grisa, no Augere
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