Um Presidente que lutou pelos direitos trabalhistas e direitos sociais |
Getúlio Vargas deixou dois
documentos de despedida. O primeiro, conhecido como Carta-testamento, foi
divulgado pelo rádio para todo o país logo após o suicídio. Foi encomendado ao
amigo de confiança José Soares Maciel Filho, por este redigido e assinado pelo
presidente. O outro, escrito a lápis em papel oficial, que chamaremos de
carta-despedida, foi encontrado depois. São dois textos muito diferentes.
A Carta-testamento é a despedida do político Getúlio Vargas. É desafiadora,
agressiva, quase triunfante. É um grito de guerra, uma conclamação ao povo para
que leve adiante a luta de sua libertação iniciada por ele, Getúlio Vargas. A
morte não é vista como derrota, mas como sacrifício redentor, como bandeira de
luta. Maciel Filho refletiu o pensamento do presidente sem ter sobre os ombros
o peso da tragédia. Nela, a morte do político Getúlio Vargas é uma vitória.
A carta-despedida é o adeus do homem Getúlio Vargas. É a expressão de
sentimentos de amargura, desencanto, derrota. A traição dos amigos, a
ingratidão de muitos, o ódio dos inimigos tinham quebrado a resistência do
velho de 72 anos, tirando-lhe a capacidade de luta exibida em outras crises. Nela,
a morte do homem Getúlio é uma derrota.
Foi a morte trágica do homem Getúlio Vargas que deu à morte do político seu
enorme poder de mobilização do sentimento popular. A junção das duas mortes
garantiu a Getúlio Vargas a entrada na história após a saída da vida. A imensa
multidão de cariocas e outros brasileiros que acompanharam seu féretro do
Palácio do Catete até o Aeroporto Santos Dumont foi o testemunho de sua vitória
e a garantia de seu lugar no coração do povo e na história do Brasil.
Carta-Testamento
um governo popular ou populista? |
Mais
uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se novamente e se
desencadeiam sobre mim.
Não me acusam, me insultam; não me combatem, caluniam e não me dão o direito de
defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não
continue a defender como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.
Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos
grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e
venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade
social. Tive que renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha
subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais
revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários
foi detida no Congresso. Contra a Justiça da revisão do salário-mínimo se
desencadearam os ódios. Quis criar a liberdade nacional na potencialização das
nossas riquezas através da Petrobrás, mal começa esta a funcionar, a onda de
agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem
que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente.
Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do
trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas
declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais
de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso
principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta
pressão sobre a nossa economia a ponto de sermos obrigados a ceder.
Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão
constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo,
renunciando a mim mesmo, para defender o povo que agora se queda desamparado.
Nada mais vos posso dar a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o
sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em
holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos
humilharem sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à
vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos
filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no meu pensamento a força para a
reação. Meu sacrifício nos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de
luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e
manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão. E
aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do
povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo
não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma
e meu sangue terá o preço do seu resgate.
Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho
lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia, não abateram meu ânimo.
Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente
dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na
história.
Carta-Despedida
Imenso cortejo acompanhou o corpo de Getúlio ao aeroporto |
Deixo
à sanha dos meus inimigos o legado da minha morte.
Levo o pesar de não haver podido fazer, por este bom e generoso povo brasileiro
e principalmente pelos mais necessitados, todo o bem que pretendia.
A mentira, a calúnia, as mais torpes invencionices foram geradas pela
malignidade de rancorosos e gratuitos inimigos numa publicidade dirigida,
sistemática e escandalosa.
Acrescente-se a fraqueza de amigos que não me defenderam nas posições que
ocupavam, a felonia de hipócritas e traidores a quem beneficiei com honras e
mercês e a insensibilidade moral de sicários que entreguei à Justiça,
contribuindo todos para criar um falso ambiente na opinião pública do país
contra a minha pessoa.
Se a simples renúncia ao posto a que fui elevado pelo sufrágio do povo me
permitisse viver esquecido e tranqüilo no chão da Pátria, de bom grado
renunciaria. Mas tal renúncia daria apenas ensejo para, com mais fúria,
perseguirem-me e humilharem. Querem destruir-me a qualquer preço. Tornei-me
perigoso aos poderosos do dia e às castas privilegiadas. Velho e cansado,
preferi ir prestar contas ao Senhor, não de crimes que não cometi, mas de
poderosos interesses que contrariei, ora porque se opunham aos próprios
interesses nacionais, ora porque exploravam, impiedosamente, aos pobres e aos
humildes.
Só Deus sabe das minhas amarguras e sofrimentos. Que o sangue de um inocente
sirva para aplacar a ira dos fariseus.
Agradeço aos que de perto ou de longe trouxeram-me o conforto de sua amizade.
A resposta do povo virá mais tarde...